Vyšehrad, Praga, 19 de abril de 2020 – Edição 33

Editorial: MICROCON, um manifesto pela tolerância

2ª edição de conferência de Estados lusófonos consagra direito à existência e ao ecumenismo no micronacionalismo de língua portuguesa

Passada uma semana desde a realização da maior concentração de micronações em duas décadas, o nome da Microcon e sua pauta de deliberações continua ressoando pelos quatro cantos da Lusofonia. Idealizada pelo anseio de resgatar a “boniteza” lúdica de um universo em aparente desencanto, especialmente em tempos de sectarismo ideológico e de maledicência militante, a II Conferência de Microestados Lusófonos foi uma reação inteligente e oportuna.

Logo de partida seu primeiro louro esteve na participação de vinte delegações nacionais que livremente expressaram seu desejo de participarem de uma teleconferência despretensiosa. Da parte da organização, capitaneada pela Alemanha em colaboração com o Manso e a Escorvânia, havia o risco do evento fracassar por ausência de quórum. Tal hipótese foi logo afastada à medida que os formulários de inscrição foram sendo recebidos contendo os nomes de mais de cinquenta representantes e observadores.

O segundo ponto sensível seria a atmosfera da sala de conferência, pois não se sabia com que temperatura o debate poderia ocorrer nos momentos de livre manifestação dos presentes. Empregando um protocolo simples, mas observando a solenidade que o momento imprimia, os oradores foram se sucedendo na tribuna cada qual agregando pontos diferenciados que aderiam à uma mesma expectativa reversa a da retórica de Persenburg. Entre discursos rebuscados, manifestações improvisadas, falas ligeiras e preleções demoradas o plenário geral da Microcon acertou novamente em resgatar o espírito ancestral do ecumenismo lusófono: ser micronacionalista é um exercício de inteligência.

Quando me refiro a inteligência percebo o termo por múltiplas dimensões, não apenas de ordem cognitiva ou de repertório acadêmico, mas enfatizo a dimensão interpessoal e o saber técnico-jurídico. O segundo é verdadeiramente denso e nem todos são obrigados a compreender ou dominar o sistema de definições e conceitos que se inter-relacionam formando a teia complexa que nutre e fundamenta uma simulação de Estado e suas relações internacionais. Este campo é gradativamente apropriado pelos micronacionalistas e está longe de ser um inibidor para o desenvolvimento geral do hobby (no máximo pode provocar algum embaraço momentâneo aqui ou ali, mas facilmente contornável). Porém trata-se da dimensão interpessoal a que desejo enfatizar.

O micronacionalismo é constituído por pessoas que, alimentadas por alguma curiosidade intelectual, foram se congregando em um ambiente que acompanhou o florescer da internet. A maioria conseguiu assimilar o novo ambiente e preservar uma saudável equidistância proporcionada pelo civismo, mesmo no calor do debate político, mas outros demonstraram (e ainda demonstram) capacidade limítrofe na tratativa com a alteridade, geralmente por não saberem lidar com uma divergência. Basta um “não” e toda uma cadeia de emoções intestinas afloram até alcançar os mais brutais níveis do ódio e da gastrite. Uma repulsa as vezes expressa de forma modulada, mas cujo produto é sempre o mesmo: alienar o direito do outro de exercer seu direito de existir.

Durante a Microcon tal sentimento esteve presente, mas contagiando uma reação civilizatória que recuperasse e reafirmasse uma das pedras angulares do micronacionalismo: a Lusofonia pertence (e sempre pertenceu) a todos. Em um cosmo tão heterogêneo de identidades e idades, de conhecimentos e de experiências, conviveram recém-chegados e os decanos. Todos  os presentes puderam compartilhar suas vivências e demonstraram uma abertura honesta para o diálogo entre as diferentes interpretações da arte ecumênica que sintetiza o fazer de nosso hobby. Isto, por si só, constituiu-se no legado moral da II Microcon a qual entra para as crônicas por se tratar de uma vitória da diplomacia, do livre exercício do pensar, da urbanidade e da inteligência. Sobretudo, da inteligência.

Há ainda uma longa estrada para ser trilhada à frente, mas são muito positivas as expectativas em torno do esforço coletivo representado pela conferência. Para muitos delegados foi uma estreia e uma primeira vivência do que é o multilateralismo e suas implicações e o micronacionalismo não é uma ciência (tampouco é capaz de sê-lo) exata, estando inteiramente dependente  do quanto as iniciativas individuais são capazes de desencadearem efeitos centrípetos. Mas as expectativas são de modo geral muito positivas.

Vinho, queijo, tereré e bauru

Antes mesmo da conferência terminar uma polêmica emergiu dos salões da diplomacia para a mais nova (e antiga) querela da Lusofonia. Não se tratava mais da guerra de taxonomias acadêmicas, mas das dimensões do império colonial português na América do Sul.

Portugal e Algarves reestreou sua participação em um fórum multilateral após um generoso hiato e para a surpresa de todos (em Lisboa), percebeu que nas terras sul-americanas pululavam projetos nacionais que vinham alcançando certo espaço no âmbito internacional. Estados estes fundados há quase um ano (outros há mais tempo), em franco processo de estruturação, porém em territórios que nos mapas portugueses (desconhecidos pelo resto do mundo) figurariam como reclamações soberanas lusitanas.

Conclusão, saímos da querela do “ismo” para a querela do atlas. A diplomacia (e o deboche) entrou em campo e mais novidades devem se seguir nas próximas semanas. Será seguramente o primeiro trabalho de uma Microcon convertida em organização permanente. Aguardemos.

Uma notícia do gueto

Esfriada por esvaziamento de legitimidade a Ideologia de Persenburg desceu um pavimento a mais do subterrâneo do mundo, um lugar sob intensa pressão sanguínea intracraniana chamado “Setor Brasileiro”, onde se fala muito em inglês. Concorreram com a Microcon e organizaram sua própria conferência. Elaboraram um novo tratado com fraseado mais razoável e com menos bile (um mérito, diga-se de passagem) e agora são oficialmente uma comunidade underground de Estados: o Gueto de Santiago, uma espécie de bolha autoimune ou talvez uma versão deep web do micronacionalismo que rende poucas notícias. Salve!